domingo, 3 de outubro de 2010

Exílio no Brasil

Exílio no Brasil é o meu mais recente romance.

Este livro nasceu de uma conversa que tive há uns tempos com um realizador de cinema que já não vive. Confidenciou-me então o cineasta que era sua intenção rodar um filme que tivesse como pano de fundo a escravatura no Brasil, sobretudo no último quartel do século XIX em que a Lei da Abolição (Lei Imperial 3 353, de 13 de Maio de 1888), provocou um verdadeiro descalabro nas roças. Sendo eu um escritor em embrião, não esperava pelo convite formal que então me foi dirigido para escrever o guião ou um romance histórico do qual pudesse ser extraído material que pela sua veracidade e realismo, sem excluir alguns episódios ficcionados, servisse de sustentáculo à realização das filmagens. De princípio, não levei as coisas a sério; depois apaixonei-me pelo assunto e entreguei-me à recolha de documentos históricos e pesquisas nas mais variadas fontes servindo-me da vasta bibliografia referenciada no fim. Pondo de parte o guião para o filme, iniciei a feitura do romance, animado pela descoberta de uma extraordinária história de amor que viria a empolgar-me do primeiro ao último momento.
Para não beliscar a autenticidade dos factos, procurei ser fiel à linguagem usada no interior do sertão relatando os seus excessos. Algumas cenas escaldantes perpassam ainda nas páginas deste livro. De resto, comprometi-me sempre com a teia romanesca e a realidade nua e crua da vida nas roças cafeeiras: a ganância dos fazendeiros sem escrúpulos, a exploração dos negros escravizados, a tortura, o ódio, o exílio, a armadilha, a traição e a morte. A condenação a galés perpétuas do negro Tomás e a sua defesa em tribunal pelo famoso jurista e deputado Joaquim Nabuco, são postas em evidência nas páginas do livro, embora a história real e a data do crime tenham sido por mim alteradas e adaptadas à história ficcionada deste romance.

Quinta do Carregal, Ovar, Outono de 2010



AQUI FICAM TRÊS EXCERTOS
Gostaria que deixassem os vossos comentários, pois eles serão muito importantes para mim.


José Medeiros deixa a miúda e vai à procura do vergalho que já surrara inúmeros escravos.
- Vou te matar de pancada!
Não mata porque a guerreira sabe jogar e resolve fazer algumas cedências.
- Ó cabrona, tu parece mesmo disposta a brincar comigo!
José Medeiros perde a paciência, lança a última ofensiva e acaba possuindo a menina à força.
- Está consolada, cabrocha? Eu sabia que tu ia gostar!
A pequena não responde; indignada, fala apenas para dentro: "Cabrocha, não é? Tu já vai saber quem é Angélica de Azevedo Coutinho, filha de um major do exército que combateu na guerra do Paraguai". Sem pejo de qualquer espécie, Zeca Diabo berra de prazer e depois, no deleite do orgasmo, fica quebrado de forças. A menina está exausta. Ainda assim, consegue reunir energias e, sub-repticiamente, vai-se libertando do peso bruto do capataz, um monte de esterco.
- Onde é que você vai?
- Lavar meu corpo.
- Tanta pressa assim, miúda! Não gostou? Então lave-se e ponha a mesa que me está chegando a fome.
"Descansa, Belzebu do Inferno, que já vais comer pela medida grande! Nunca conheceste o sabor de bala, pois não?", cogita Angélica. Num movimento rápido, a moleca aproxima-se da porta de entrada, vai ao cabide onde está o jaleco e o cinturão do capataz e saca a pistola do coldre. Não perde um segundo: roda a patilha de segurança da arma e encaminha-se para o quarto onde o garanhão ainda resfolga de volúpia. José Medeiros apercebe-se do acto tresloucado da menina e tenta dissuadi-la de cometer a proeza:
- Que vais fazer, desgraçada? Queres morrer numa cadeia?
Angélica está desesperada e não obedece ao conselho:
- Vou lhe tirar do mundo, malvado! Você se portou como o mais reles cafajeste e não tem mais perdão.
- Passa-me pra cá o revólver, cachopa!
- Não se mexa, bode repugnante! Fique quieto ou eu disparo.
O capataz tenta sorrir, um sorriso de pânico:
- Tu não tens coragem de fazer uma coisa dessas, miúda!
- Eu disse para não avançar.
Angélica está cega e, perante a progressão gradual do carrasco, acaba puxando o gatilho da arma. O tiro à queima-roupa é violento e o projéctil acerta em cheio no peito de José Medeiros, abre uma ferida no sítio do coração e o capataz quase não reage.
- Ai... Vou morrer!
Não tem tempo de dizer mais nada. Deixa pender a cabeça e exala o último suspiro.
De cabeça perdida, a rapariga confirma a morte do violador, corre para a saída, introduz a chave na ranhura da fechadura, dá duas voltas e vence a porta da rua. Ainda o Sol não se pôs de vez, a pardalada porfia na copa das palmeiras imperiais, mas àquela hora do crepúsculo já não paira vivalma no terreiro. Depois de um dia de trabalho na Roça, todo o mundo está procurando o merecido descanso. Angélica tenta manter o sangue-frio e a calma; ela sabe que sem uma atitude serena não alcançará a sua liberdade. Na cocheira, o cavalo do homem que não voltará a montá-lo come a sua última ração de palha abocanhando os restos espalhados na manjedoura. A cabrita entra com receio de levar um coice mas o animal, habituado aos maus-tratos do dono, só conhece a obediência e a mansidão. Possante, capaz de trotar durante horas a fio, o cavalo possui a virtude da docilidade.
- Vamos, ajuda-me - suplica Angélica. - A minha fuga é a tua liberdade.


(…)


“Deprimido, o cônsul deixou Mariano Barros ao lado do negro e caminhou sem destino certo até se perder no meio da senzala. De súbito, chegou-lhe aos ouvidos, como uma brisa suave no meio da fornalha ardente do Sol, os acordes plangentes de uma viola. Derreado entre as barracas, Bragança foi-se aproximando do lugar de onde partia o som musical. Deparou com uma cabana meio esventrada pelo vento, com um buraco no tecto por onde se evolavam rolos de fumo. A um canto, uma velha desdentada, de carapinha branca e uns horrorosos seios caídos sobre o ventre seminu, cozinhava ao lume uma panela de funge; e, no meio do casebre, sentado numa rodilha de trapos, um negro de sumidas carnes, depauperado e cego, ia arrancando dum artesanal instrumento de cordas sons que o ajudavam a recitar o poeta Castro Alves, nos versos que cantavam o exílio amargo dos negros:

"Lá, na húmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto à fogueira, no chão,
Entoa o escravo seu canto
E ao cantar correm-lhe, em pranto,
Saudades do seu torrão".

Através das fendas da cabana, José Afonso quedou-se, especado, a contemplar a triste cena. De dentro, recebeu o cônsul um bafo sufocante a milho assado, farinha queimada, mijo e matérias fecais à espera de serem removidas. Era seu desejo entrar na barraca, falar com aquelas criaturas desgraçadamente transformadas em míseros despojos, mas faltou-lhe a coragem necessária para dar um passo em frente. E quando Bragança passava em revista os haveres daqueles pobres negros: velhos e esburacados chapéus de palha, asquerosos farrapos de vestir, meia dúzia de copos de bambu, tigelas de madeira, cacos de barro chamados de pratos e travessas, uma colecção de garfos e colheres de pau, uma candeia de azeite, uma catana enferrujada e um sacho - património adquirido ao longo de várias décadas de trabalho forçado na roça - sentiu um quebranto e começou a transpirar abundantemente. "Sintomas de febre palúdica?", pensou, contendo um vómito inesperado. "Não estou bem, o que é que eu tenho? Ó Deus, como é possível esconderdes tanta infâmia e tanta cobardia!"
Depois de recuperar algum alento, José Afonso voltou de novo a sua atenção para o quadro que tinha diante dos olhos. Apesar de tísico e cego, o negro que se despedia do mundo naquela mísera barraca não parecia resignado à sua sorte e, valendo-se do instrumento de cordas e da inspiração de Castro Alves, ia lançando no ar o seu grito de revolta:

"Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz".

"Tudo aquilo que eu pensava antes de partir para o Brasil se consumou: caí na armadilha que habilmente me montaram recebendo com toda a pompa e glória um passaporte para o exílio", reflectiu Bragança. Estas cogitações não duraram muito tempo porque a recusa do cônsul em pactuar com a ignomínia levaram-no a despertar daquele pesadelo. Cobrando ânimo, José Afonso pôs-se a caminhar através da senzala, apressadamente, decidido a mudar o mundo.”

(...)

Ouvidas todas as testemunhas, e antes das alegações finais, foi perguntado ao réu se estava arrependido do crime que praticara ao balear mortalmente o dono da Fazenda, o barão Jerónimo de Ataíde.
A resposta de Tomás, que era um negro estudioso e com uma cultura acima da média:
- Se pratiquei um delito, o meu acto não assume as proporções danosas dos crimes perpetrados não só no interior do sertão brasileiro, mas ainda dentro dos navios negreiros, tumbeiros e funileiros, onde já morreram de fome, sede, doenças e castigos corporais, dezenas de milhares de negros. Tais crimes são monstruosos já que perpetrados a coberto duma falsa legalidade, e não desencadearam ainda, pelo menos que eu saiba, um sentimento de compaixão ou arrependimento. Por isso, não posso arrepender-me por um acto de justiça que cometi.
E perante o espanto não apenas das pessoas que assistiam ao julgamento mas ainda dos juristas, Tomás lamentou:
- Durante mais de dois séculos, temos estado sós, sem uma única voz a levantar-se para nos defender. E se este tribunal estiver decidido a condenar-me ao cadafalso, que eu seja sacrificado em nome de todos os negros que trabalham não apenas na Sapucaia mas em todas as roças do Brasil. Que o meu sacrifício possa de algum modo contribuir para o seu resgate impedindo que mais inocentes sejam castigados no tronco e mais infelizes optem pelo suicídio, minados pelas saudades da Pátria. Não faço mais qualquer declaração a este Tribunal. Peço ao Senhor Doutor Juiz que analise com lucidez o delito que cometi e me sentencie obedecendo ao imperativo da razão e da consciência.
Depois da surpreendente confissão do réu, era latente a revolta na bancada da Acusação. Contudo, Fortunato de Almeida não permitiu que o Dr. João Franco contestasse as afirmações do réu. Dirigindo o olhar na direcção do cônsul, o Juiz convidou-o a prestar o seu depoimento:
- Tem a palavra o Dr. José Afonso Bragança.
Com a serenidade própria dos homens norteados pelos rectos ideias de justiça e, como tal, devotados às grandes causas, Bragança começou por declarar:
- Quando aceitei as funções de cônsul de Portugal no Brasil, assumi perante o meu Rei o compromisso de fazer uma digressão pelas roças a fim de me inteirar, in loco, da situação dos colonos portugueses e das dificuldades que atravessam de momento face à actual crise de mão-de-obra, aberta por vários e sucessivos decretos que visam a abolição da escravatura. Durante semanas consecutivas, sem me poupar a esforços, visitei mais de vinte lavouras cafeeiras, observei, auscultei, interroguei, o que me permitiu fazer uma avaliação, em meu entender correcta, do que encontrei no terreno. Em abono da verdade, devo dizer a este tribunal que não fiquei agradado do que vi. E a realidade é esta: por todo o estado do Rio de Janeiro, e presumo que em outras regiões, os negros estão a ser tratados de forma inqualificável por feitores e capatazes que se norteiam por métodos bárbaros e primitivos, impróprios de um Povo com tradições gloriosas, cristãs e civilizadoras. Sei que estas palavras não vão ser bem acolhidas pela esmagadora maioria dos roceiros portugueses que, a partir de agora, me irão olhar com uma atitude de grande desconfiança, para não dizer de hostilidade. Mas nada disso me impede de seguir o código de valores que sempre norteou a minha vida. O Governo de Lisboa está interessado no crescimento das remessas dos colonos portugueses que aqui se estabeleceram desde longa data e que ultimamente têm diminuído de forma considerável; todavia, não é digno de um país civilizado crescer à custa da exploração que uma certa casta, chamada de aristocracia rural, vem desde há muito sujeitando uma raça indefesa - a raça negra - sugando-a e espoliando-a de forma verdadeiramente inqualificável. E o que eu vi na maioria das roças que visitei, nomeadamente na Sapucaia, são autênticos atropelos às normas éticas e à liberdade: homens, mulheres, velhos e crianças a vegetar em cabanas húmidas, sem soalho, sem água corrente e sem qualquer tipo de instalações sanitárias, excepto uma lata reservada às matérias fecais; récuas de negros a trabalharem, de sol nado a sol-posto, sob a ameaça do chicote; e as miseráveis torturas que aqui foram já denunciadas, como os castigos no tronco e a aplicação do ferrete. Não embarquei para este imenso império com a missão de defender a classe negra. Mas vim para impedir que roceiros portugueses sem escrúpulos tenham comportamentos indignos da Nação a que pertencem.

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